Artigo vinculado na revista Bundas número
13, 7 a 13 de Setembro de 1999. .
A
morte da Alma Nacional
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- Aloysio Biondi -
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Reverencialmente, peço licença ao mestre Celso Furtado para
repeti-lo: "Nunca estivemos tão longe do país com que sonhamos
um dia".
Uma pequena frase. Capaz, porém, de detonar um turbilhão
de lembranças, das emoções e expectativas, dos dias
em que o Brasil era um país e tinha sonhos.Um povo que sonhava
virar Povo. Estudantes, intelectuais, trabalhadores, agricultores, classe
média envolvidos no debate pelo desenvolvimento, conscientes, todos,
de que havia um preço a pagar, resistências a enfrentar. Inimigos,
interesses externos a vencer. Um país com alma, sonhos. Durante
40 anos, 45 anos, houve crises de todos os tipos. Mas havia o
amanhã, a
promessa do amanhã. A busca do amanhã. Um lugar no mundo.
Na década de 50, com a economia resumida ao café, açúcar,
algodão e outros produtos agrícolas, o país lançou-se
à loucura de buscar a industrialização. Sem dólares
para importar máquinas e equipamentos, pois os preços dos
produtos agrícolas
estavam de lastros no mercado mundial, estrangulando países pobres
como o Brasil. Mesmo assim, o páis ousou. Era a época em
que os intelectuais e formadores de opinião escreviam livros, artigos,
teses sobre e contra as políticas de estrangulamento que os países
ricos impunham a países como
o Brasil. Ou faziam músicas, peças teatrais, filmes sobre
a realidade brasileira. Reforçavam a alma brasileira. O sonho realizável.
Será que dona Ruth Cardoso se lembra disso? Chegou a década
de 60, e com ela o golpe militar inspirado pelos EUA, desvios de rota que,
no entanto, não conseguiram enterrar de vez os sonhos de construção
de um país... A alma nacional resistia. Veio a crise do petróleo,
no começo dos anos 70, e o país, que produzia 130 mil barris
por dia, mergulhou novamente no abismo da falta de dólares, na recessão,
no avanço da miséria. Um país "quebrado", com total
falta de dólares, mas que insistia em sonhar com um amanhã.
Em nome desse sonho, novamente, a população pagou a conta.
O governo contraiu dívidas fabulosas, criou impostos, apertou o
cinto e o crânio dos brasileiros, para canalizar o dinheiro disponível,
dos impostos ou empréstimos, para montar indústrias capazes
de fornecer produtos que ainda eram importados, de aço a alumínio,
de celulose a petroquímicos, de máquinas a sistemas de telecomunicações.
Substituir importações para economizar dólares, necessários
para a compra de petróleo, ainda não descoberto em grande
escala no território brasileiro. Para atender a todas essas novas
indústrias, era preciso também construir usinas, as Itaipus,
rodovias, ferrovias (o Brasil chegou a produzir 5.000 vagões por
ano, com encomendas do governo), sistemas de telecomunicações.
Mais aperto de cinto, mais impostos, menos dinheiro para as questões
sociais, nunca esquecidas nem mesmo nos debates e escritos dos economistas,
ou de empresários. Mas havia a esperança do amanhã.
O sonho, de que fala o mestre Furtado, de um país economicamente
forte, exatamente por dispor de todos os recursos naturais para isso, mas
também capaz, ao atingir esse estágio, de maior justiça
social, de extinção da miséria. Habitado por um Povo.
Orgulhoso de si. Solidário, porque se reconhecendo no outro.
No começo dos anos 90, o sonho estava ao alcance da mão,
o amanhã chegava. O Brasil conquistara uma posição
entre as dez maiores economias do mundo. Melhor ainda: o Brasil nadava
em dólares, porque era capaz de realizar exportações
muito maiores do que as importações. Poucos se lembram disso
hoje, mas o Brasil tinha um dos maiores saldos comerciais positivos (exportações
menos importações) do mundo, na casa dos 10 a 15 bilhões
de dólares por ano. Tinha dólares seus, não precisava
mais de empréstimos ou de
capital das multinacionais
para realizar investimentos e manter a economia em expansão, para
criação de empregos e solução dos problemas
do seu povo. Foi ontem, e está tudo tão distante. A serviço
de outros países, o governo escancarou o mercado às importações
e às multinacionais. Feiticeiros malditos transformaram o saldo
positivo da balança comercial em um "rombo" permanente, deram vantagens
na cobrança de impostos sobre remessa de juros e de lucros estimulando
o envio de dólares para o exterior, elevaram os juros para cobrir
os rombos criados, "quebraram" assim a União, Estados, Municípios.
Destruíram a indústria e a agricultura. Em cinco ou seis
anos, clones malditos dos intelectuais de ontem, destruíram o que
havia sido construído ao longo de décadas. Destruiram mais.
Destruíram o sonho, a Alma
Nacional. O que
somos hoje? Um quintal dos países ricos? Não. Somos um curral.
Bovinos ruminando babosamente enquanto o vizinho do lado, o trabalhador,
o funcionário público, o aposentado, o agricultor, o
empresário,
todos, um a um, são arrastados para o grande matadouro em que o
país se transformou, com suas mil formas de abate como o desemprego,
os cortes na aposentadoria, as falsas reformas do funcionalismo, a falência,
as importações. Bovinos ruminando no curral, enquanto empresas
de todos os
portes são
engolidas por grupos estrangeiros e até o petróleo, ou os
campos mais fabulosos de petróleo do mundo, com poços capazes
de produzir 10.000 (dez mil) barris por dia, um único poço,
são entregues a preço simbólico às multinacionais.
Em cinco anos, o governo Fernando Henrique Cardoso não destruiu
apenas a economia nacional, tornando-a dependente do exterior. Seu crime
mais hediondo foi destruir a Alma Nacional, o sonho coletivo. Para
isso, e com a ajuda dos meios de comunicação, jogou o consumidor
contra os empresários nacionais, "esses aproveitadores"; o contribuinte
contra os funcionários públicos, "esses marajás";
o pobre contra os agricultores, "esses caloteiros"; a opinião pública
contra os aposentados, "esses vagabundos". No governo FHC, o brasileiro
foi levado a esquecer que, em qualquer país do mundo, a sociedade
só pode funcionar com base em objetivos que atendam aos interesses,
necessidades de todos - ou, mais claramente, não se pode por exemplo
ter uma política de importação indiscriminada, a pretexto
de beneficiar o consumidor, sem provocar desemprego e quebra de empresas.
Ou, a longo prazo, desemprego generalizado.
Com o jogo perverso de estimular a busca de pretensas vantagens individuais,
o governo FHC destruiu a busca de objetivos coletivos. Destruiu a Alma
Nacional, o Projeto Nacional. A violenta desnacionalização
sofrida pelo Brasil, em sua economia, vai eternizar a remessa de lucros,
dividendos, juros para o exterior. Isto é, vai torná-lo totalmente
dependente da boa vontade dos governos de países ricos em fornecer
dólares e, portanto, de ordens e autorizações desses
goverrnos de países ricos. Uma espécie de colônia,
mesmo, como alertou o economista Celso Furtado em palestra que ele encerrou
com sua frase, arrasadora para quem viveu o Brasil de 50 para cá,
"nunca estivemos tão distante do Brasil com que um dia sonhamos".
Mesmo sem tê-lo consultado a respeito, uma sugestão: escreva
a frase de Furtado em um pedaço de papel, e a releia todos os dias.
Ou faça decalques com ela. Sugira que seus amigos façam o
mesmo. E comece a agir. Ainda há tempo de ressuscitar a Alma
Nacional, antes que o Brasil vire colônia.