Fazer a guerra para conquistar a paz
- Carlos Chagas -
De repente, o governo descobre e se apavora com o caos social. Faz anos que a temperatura perigosamente se eleva, não apenas nas favelas, periferias e bairros pobres das grandes cidades, mas, também, nos mais recônditos grotões. Era como se nada estivesse acontecendo.
Acima disso, valiam as estatísticas de ingresso do capital predador
e especulativo que nada criava, sequer um emprego. Importava, para os donos
do poder, afastar o Estado das relações econômicas,
suprimir direitos sociais, acabar com tudo o que fosse público,
aumentar as vantagens para o festival das multinacionais e vangloriar-se
de que, dessa forma, ingressaríamos no Primeiro Mundo. Só
assim nos prepararíamos para a livre concorrência com potentados
muito mais ricos. Quem não se reciclasse, estaria condenado por
sua própria conta, risco e responsabilidade. Chegaram a dizer, ou
melhor, disse o presidente da República, que o governo não
existia para cuidar do andar de baixo.
Pois bem: o andar de baixo não suportou mais o peso. Revoltou-se.
Começa a erodir as estruturas que sustentam os andares intermediários
e até o andar de cima. O resultado é que está tudo
balançando pelas mãos de mais de 40 milhões de excluídos,
obrigados a sobreviver de expedientes, com menos da metade do obsceno mínimo
de R$ 151. Juntaram-se os sem-terra aos que se encontram sem emprego, entregues
à violência e ao crime, meros reflexos da falta de condições
para agir de outra forma. O cidadão comum, o que ainda paga impostos,
encontra-se prisioneiro em sua própria casa. Isso quando tem casa.
Como já está perdendo o emprego, prepara-se para descer um
ou mais andares.
Reúne-se agora o governo para cuidar da questão. Como? Reformulando
a Lei de Segurança Nacional, criando o Ministério da Segurança
Nacional, revivendo a Guarda Nacional e imaginando acionar as Forças
Armadas para guerrear com o povo. Preparam tacape e borduna para conter
os desesperados. Nem pensam em tentar combater a fome, a miséria
e a doença, o que exigiria reuniões das equipes econômica
e social. O problema fica a cargo do general secretário do Gabinete
de Segurança Institucional, do ministro da Justiça, do secretário-particular
da presidência da República e do chefe da Casa Civil. Deve-se,
essa singular iniciativa, ao fato de a indignação pública
estar atingindo alguns privilegiados, a começar pelos próprios
governantes, aos quais o Brasil dedica impropérios, bandeiradas,
ovos e, ninguém duvide, logo algumas tortas de creme. Tudo, é
claro, numa primeira etapa, porque depois virá coisa bem pior.
Reformular a malfadada Lei de Segurança Nacional dos tempos da ditadura
servirá para quê? Só se for para criar outra vez a
pena de reclusão para quem publicar notícias verdadeiras,
se estas servirem para indispor o povo com as autoridades constituídas.
Criar o Ministério da Segurança Nacional à maneira
do Ministério da Paz, de George Orwell, aquele que cuidava da guerra
e ainda reescrevia o passado de acordo com as previsões do futuro?
Reviver a Guarda Nacional, que, quando existia, tinha sua oficialidade
constituída pelos donos da terra, mobilizando tanto peões
como milícias particulares para defender seus interesses? Ou transformar
Exército, Marinha e Aeronáutica nessas milícias, que
já se negaram a perseguir escravos fugidos, mas, agora, seriam obrigados
a subir morros, combater narcotraficantes, contrabandistas, seqüestradores
e cafetões da prostituição infantil?
Tem um estranho subproduto nessa história, que seria afastar as
Forças Armadas de sua missão constitucional de defesa da
soberania e da territorialidade nacional, tornando-se mais fácil,
assim, alienar a Amazônia, quem sabe o Pantanal e outras regiões,
privatizando-as para alguma multinacional. Quanto ao andar de baixo, pouco
lhes importa. E não seria difícil atendê-lo, primeiro
com sensível aumento do salário mínimo, depois com
a criação de frentes públicas de trabalho, em seguida
com investimentos no serviço público e - quem sabe - até
com a distribuição de terras e a concessão de crédito
rural na medida das necessidades.
Em suma, pretendem uma operação de guerra para fazer a paz,
o que nos leva outra vez ao genial autor do "1984". Porque essa inusitada
iniciativa nada mais é do que o "duplipensar", uma esperança
a mais de que em pouco tempo estejamos todos chorando de emoção
e reconhecendo que amamos o Grande Irmão. É claro, com vários
copos de gim por dia. Se ficar difícil, cachaça mesmo...