Jornal Gazeta do Povo, 26 de Maio de 2000.

Fazer a guerra para conquistar a paz

- Carlos Chagas -


Segundo o autor, o andar de baixo não suporta mais o peso. Revoltou-se.

    De repente, o governo descobre e se apavora com o caos social. Faz anos que a temperatura perigosamente se eleva, não apenas nas favelas, periferias e bairros pobres das grandes cidades, mas, também, nos mais recônditos grotões. Era como se nada estivesse acontecendo.

    Acima disso, valiam as estatísticas de ingresso do capital predador e especulativo que nada criava, sequer um emprego. Importava, para os donos do poder, afastar o Estado das relações econômicas, suprimir direitos sociais, acabar com tudo o que fosse público, aumentar as vantagens para o festival das multinacionais e vangloriar-se de que, dessa forma, ingressaríamos no Primeiro Mundo. Só assim nos prepararíamos para a livre concorrência com potentados muito mais ricos. Quem não se reciclasse, estaria condenado por sua própria conta, risco e responsabilidade. Chegaram a dizer, ou melhor, disse o presidente da República, que o governo não existia para cuidar do andar de baixo.
    Pois bem: o andar de baixo não suportou mais o peso. Revoltou-se. Começa a erodir as estruturas que sustentam os andares intermediários e até o andar de cima. O resultado é que está tudo balançando pelas mãos de mais de 40 milhões de excluídos, obrigados a sobreviver de expedientes, com menos da metade do obsceno mínimo de R$ 151. Juntaram-se os sem-terra aos que se encontram sem emprego, entregues à violência e ao crime, meros reflexos da falta de condições para agir de outra forma. O cidadão comum, o que ainda paga impostos, encontra-se prisioneiro em sua própria casa. Isso quando tem casa. Como já está perdendo o emprego, prepara-se para descer um ou mais andares.

    Reúne-se agora o governo para cuidar da questão. Como? Reformulando a Lei de Segurança Nacional, criando o Ministério da Segurança Nacional, revivendo a Guarda Nacional e imaginando acionar as Forças Armadas para guerrear com o povo. Preparam tacape e borduna para conter os desesperados. Nem pensam em tentar combater a fome, a miséria e a doença, o que exigiria reuniões das equipes econômica e social. O problema fica a cargo do general secretário do Gabinete de Segurança Institucional, do ministro da Justiça, do secretário-particular da presidência da República e do chefe da Casa Civil. Deve-se, essa singular iniciativa, ao fato de a indignação pública estar atingindo alguns privilegiados, a começar pelos próprios governantes, aos quais o Brasil dedica impropérios, bandeiradas, ovos e, ninguém duvide, logo algumas tortas de creme. Tudo, é claro, numa primeira etapa, porque depois virá coisa bem pior.
    Reformular a malfadada Lei de Segurança Nacional dos tempos da ditadura servirá para quê? Só se for para criar outra vez a pena de reclusão para quem publicar notícias verdadeiras, se estas servirem para indispor o povo com as autoridades constituídas. Criar o Ministério da Segurança Nacional à maneira do Ministério da Paz, de George Orwell, aquele que cuidava da guerra e ainda reescrevia o passado de acordo com as previsões do futuro? Reviver a Guarda Nacional, que, quando existia, tinha sua oficialidade constituída pelos donos da terra, mobilizando tanto peões como milícias particulares para defender seus interesses? Ou transformar Exército, Marinha e Aeronáutica nessas milícias, que já se negaram a perseguir escravos fugidos, mas, agora, seriam obrigados a subir morros, combater narcotraficantes, contrabandistas, seqüestradores e cafetões da prostituição infantil?
    Tem um estranho subproduto nessa história, que seria afastar as Forças Armadas de sua missão constitucional de defesa da soberania e da territorialidade nacional, tornando-se mais fácil, assim, alienar a Amazônia, quem sabe o Pantanal e outras regiões, privatizando-as para alguma multinacional. Quanto ao andar de baixo, pouco lhes importa. E não seria difícil atendê-lo, primeiro com sensível aumento do salário mínimo, depois com a criação de frentes públicas de trabalho, em seguida com investimentos no serviço público e - quem sabe - até com a distribuição de terras e a concessão de crédito rural na medida das necessidades.

    Em suma, pretendem uma operação de guerra para fazer a paz, o que nos leva outra vez ao genial autor do "1984". Porque essa inusitada iniciativa nada mais é do que o "duplipensar", uma esperança a mais de que em pouco tempo estejamos todos chorando de emoção e reconhecendo que amamos o Grande Irmão. É claro, com vários copos de gim por dia. Se ficar difícil, cachaça mesmo...
 


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