Crônica publicada em alguns jornais de grande circulação.
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De novo o dilúvio
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- Carlos Chagas -
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    Ninguém acreditou quando um desavisado pipoqueiro que faz ponto na Praça dos Três       Poderes jurou tê-los visto ao entardecer, na vasta calçada fronteiriça ao Palácio do Planalto. Era coisa de maluco.
    Mesmo assim, uma repórter abelhuda decidiu arriscar e postou-se na entrada do pequeno Museu JK, oculta pelo lusco-fusco. Ficou de plantão ali por três dias, sem ver nada. Quando já praguejava por te lado ouvidos a mais um fantástico boato, surpreendeu-se. De repente, ali estavam eles, passeando. Aprumados, terno e gravata pareceram não vê-la quando se aproximou, até que Tancredo Neves balançou a cabeça, num cumprimento formal, seguindo-se um sorriso amplo de Juscelino Kubitschek e um aceno de Ulysses Guimarães.
    Como teriam os três grandes líderes do passado, aliás três ex-presidentes, um efetivo, outro interino e o terceiro eleito, surgindo assim sem mais aquela no centro do poder nacional depois de mortos há tanto tempo?
    A jovem aproximou-se, tremendo e lamentando não ter trazido junto um cinegrafista. Ouvindo que era jornalista, os três não demonstraram açodamento, mas ficou evidente estarem curiosos. JK foi o primeiro a querer saber se haviam mesmo privatizado a CSN, a Light e a Vale do Rio Doce, além de estarem retaliando Furnas, Três Marias e outras hidrelétricas. Indagou se era verdade a entrega à iniciativa privada das principais rodovias e ferrovias. Diante das afirmativas, virou-se para os outros e afirmou: "eu não disse?"
    Tancredo demonstrou-se conhecedor da economia. Perguntou de que maneira o sistema bancário estava sendo entregue aos estrangeiros, se o BNDES financiava as privatizações e se as exportações estavam nas mãos de multinacionais. Demorou-se em questionar os índices da dívida externa e da dívida pública, além da participação do FMI em nossas decisões econômicas.
    Coube a Ulysses enveredar pela questão social. Não acreditou ao saber da multiplicação do desemprego e da supressão dos direitos sociais do trabalhador; assustando-se com a notícia da extinção iminente da Justiça do Trabalho. Ficou triste com o fim do monopólio do petróleo e com os ataques do capital especulativo estrangeiro. O interrogatório continuou.
    A moça estava afiada. Mais do que de números e estatísticas que tinha na cabeça, falou de denúncias de irregularidades no Banco Central e explicou quem eram Mendonça de Barros e Salvatore Cacciolla. Quando lembrou a participação de Chico Lopes, JK comentou "não acreditar que um filho do Lucas tivesse agido assim". Quando retornasse, iria procurar o ex-ministro na sua nuvem. Tancredo atalhou "que o menino era mesmo meio doido", mas Ulysses não se conteve: "E ainda por cima não votou em mim. Votou no Collor..."
    A conversa durou horas, entrou pela madrugada, tendo os três ex-presidentes perguntado pouco sobre o atual sucessor. JK não se lembrava dele, Tancredo lembrou não tê-lo nomeado para o ministério e Ulysses recordou que, num certo período, Fernando Henrique não o largava. Não manifestaram surpresa. Desnacionalização, entrega do patrimônio nacional e de setores estratégicos da economia ao estrangeiro, abertura das fronteiras à importação de supérfluos, dificuldades aumentadas para as nossas exportações, ajuda aos bancos, isenção de impostos e taxas para os maiores bancos e empresas, criação de novos impostos, multiplicação do número de excluídos, violência no campo, volta de doenças que se imaginavam extintas, sucateamento da indústria, tudo, enfim, levava-os apenas a repetir: "eu não disse?"
    Foi quando se despediram. Explicaram ser aquelas as últimas horas de validade do passe que tinham recebido para descer. Uma deferência da Autoridade Suprema, em troca da qual lhes havia pedido um diagnóstico sobre a realidade brasileira e uma sugestão sobre o que fazer. A repórter despediu-se mas ainda ouviu quando, antes de desaparecer; acertaram o que diriam, voltando ao céu. Proporiam um novo dilúvio...


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