Jornal Gazeta do Povo, 3 de Março de 2000.
.
Dependência e Relatividade
.
- Carlos Chagas -
.

Segundo o autor, dois mandatos a um presidente assim são um risco dos diabos.


.
    Conta o folclore que quando Albert Einstein veio ao Brasil, na década de trinta, os "Diários Associados" destacaram um jovem repórter para acompanhá-lo. Era Austregésilo de Athaíde, que já ensaiava os primeiros passos na literatura. Depois de uns dias cumprindo fielmente suas funções, o jornalista criou coragem e passou-lhe alguns textos de sua autoria, dizendo tratar-se de algumas idéias inovadoras que tivera. Recebendo com delicadeza o material, Einstein não evitou o humor que caracterizava suas reações: "Que beleza, o senhor teve diversas idéias inovadoras. Eu só tive uma..."

    A história se conta a propósito da realidade que vivemos. Quantas propostas destinadas a mudar o mundo terá tido o gênio da sociologia que hoje nos governa?
    Dezenas? Talvez centenas, todas postas em prática durante o seu já prolongado governo: inserir o Brasil no Primeiro Mundo através da adoção do modelo econômico vigente no Hemisfério Norte; rever as noções de soberania e de estado nacional em favor da subordinação de nossas instituições aos interesses hegemônicos da superpotência única que domina o mundo; internacionalizar a economia por meio da entrega de nossas empresas públicas ao capital estrangeiro, quer dizer, privatizar o conjunto erigido às custas do trabalho de todos; abrir as fronteiras ao capital predador e especulativo externo, multiplicando as dívidas como sinal de poder; aceitar as barreiras alfandegárias dos países ricos à exportação de nossos produtos e escancarar-nos para todo o tipo de exportações alienígenas. E outras.

    Há, no entanto, quem imagine que, à maneira de Einstein, FH só teve uma idéia inovadora, até hoje: estabelecer a teoria da dependência. Melhor dizendo, acabar com o Brasil.

    Tanto faz em que corrente cada um se situe, porque dá no mesmo. A verdade é que dois mandatos para um presidente assim constituem um risco dos diabos. Porque pode dar certo. Ninguém garante que, a 31 de dezembro de 2002, o Brasil ainda exista como nação. Poderá ter-se evaporado, desaparecido como entidade autônoma, no afã de imitar os poderosos. Só que com uma ironia: os países ricos nos impõem essas e outras preciosidades inovadoras mas são aqueles que mais cultivam as respectivas soberanias e melhor estruturam os interesses de seus Estados nacionais. Vá um japonês tentar importar para o seu território um grão de arroz que seja, sequer para exposições agrícolas e museus de História Natural. Será preso e condenado em quinze minutos, sem apelação, porque uma das exigências do estado japonês, para continuar a existir, é a de poder produzir em seu território a alimentação indispensável a manter sem dependência externa a sua população. Na Comunidade Européia, pense algum governante em eliminar subsídios agrícolas e pecuários para ver o que acontece. Deixará de ser governante em tempo até inferior. Só para citar o terceiro ângulo desse triângulo de poder: perderá as eleições, nos Estados Unidos, aquele que se apresentar sustentando a derrubada de suas barreiras à importação de produtos do Terceiro Mundo. Sobretaxar para garantir a hegemonia e impedir a concorrência é o principal mandamento econômico dos americanos.

    Tem saída? Pode ser, desde que o nosso Einstein caboclo se disponha a revogar suas idéias. Porque tempo para esperar as próximas eleições presidenciais não há. Seria preferível aguardar novas eleições e escolher quem dispuser de outro elenco de idéias, como, por exemplo, a de recuperar o estado e a soberania brasileiros. Só que a ameaça é muito grande. Poderemos não conseguir chegar lá antes da desagregação ou da explosão definitiva.

    Outra alternativa: interromper o processo em curso e fazer prevalecer a lógica das coisas, que é nossa sobrevivência como nação. Cada um que tire suas conclusões, mas não se imagine essa hipótese como simples devaneio de véspera de carnaval. Cada dia que passa transforma-se num anseio, talvez numa determinação. Porque a dependência de um exprime a relatividade do outro. Quando vira submissão e ameaça torna-se extinção, não pode permanecer. E um bom Primeiro de Maio para todos, mesmo faltando tanto tempo para o dia que, sendo do Trabalho, poderá também ser da Libertação...


[volta]

Brasil, ame-o ou deixe-o.
http://brasil.iwarp.com/
bandeira